Jogo do Tigrinho e Saúde Mental

Jogo do Tigrinho e Saúde Mental

O Jogo do Tigrinho virou febre, mas quais os impactos psíquicos e sociais dessa lógica de recompensa imediata? Um mergulho clínico sobre vício, neurodivergência e a economia da dopamina.

Nos últimos anos, o chamado Jogo do Tigrinho se espalhou pelas redes como uma febre silenciosa. Vídeos e stories com promessas de riqueza instantânea, músicas temáticas que induzem ao jogo, cortes rápidos do dinheiro caindo aos monte com cores vibrantes, celebridades influenciando e usuários narrando supostas vitórias criam o cenário perfeito para fisgar um público emocionalmente vulnerável, economicamente instável e neurologicamente suscetível ao sistema de recompensa.

Este fenômeno nos apresenta um novo modismo digital ao mesmo tempo que denuncia um espelho do tempo, uma vez que falar sobre o Tigrinho é falar sobre o presente: um presente marcado por desamparo, exaustão e uma busca desenfreada por alívio rápido. É também falar sobre uma engrenagem cruel que explora os circuitos neurológicos mais primitivos da mente humana, principalmente aqueles ligados à dopamina, ao risco, ao prazer e à promessa de controle sobre um mundo cada vez mais caótico.

A compulsão por jogos não é coisa nova na nossa sociedade, o que muda agora é o formato, a linguagem, o alcance. O que antes exigia deslocamento físico até um cassino, hoje cabe na palma da mão. E mais: é legitimado por influenciadores digitais, romantizado por estratégias de marketing agressivas e protegido por zonas cinzentas da legislação.

O resultado é um campo minado, onde o entretenimento encontra a manipulação e a vulnerabilidade vira lucro.

O ciclo da dopamina e o vício travestido de oportunidade

o Jogo do Tigrinho opera sob estímulo sensorial intenso e gratificação imediata.
o Jogo do Tigrinho opera sob estímulo sensorial intenso e gratificação imediata.

Do ponto de vista clínico, o Jogo do Tigrinho opera sobre o mesmo eixo dos vícios comportamentais clássicos: reforço intermitente, estímulo sensorial intenso e gratificação imediata.

Cada rodada, cada clique, cada microvitória libera uma descarga de dopamina que produz sensação momentânea de alívio e prazer. O problema é que essa descarga não vem sozinha, ela é seguida por frustração, ansiedade e um impulso crescente de tentar de novo.

O ciclo se repete.

E quanto mais ele se repete, mais o cérebro passa a condicionar a ideia de recompensa àquela atividade específica.

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Isso não é entretenimento, é dependência sendo cultivada em escala industrial para lucro de grandes empreendedores que não visam o bem-estar social.

O impacto disso é ainda mais profundo quando falamos de pessoas neurodivergentes. Sujeitos com maior impulsividade, dificuldades de autorregulação emocional, tendência a hiperfoco ou busca por estímulos intensos encontram nesses jogos uma armadilha quase perfeita.

Não é que eles sejam fracos ou irresponsáveis, é que seus sistemas sensoriais e cognitivos respondem de forma distinta, e a lógica desse tipo de plataforma é justamente se aproveitar dessas diferenças.

A promessa de ascensão em meio ao colapso: o lucro sobre o desespero

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O jogo do Tigrinho se apresenta como solução rápida dos seus problemas.

Infelizmente o Jogo do Tigrinho não se vende como lazer, ele se apresenta como solução rápida dos seus problemas, uma vez que vivemos em um país onde a desigualdade estrutural se acirra, onde o desemprego se torna crônico e onde a sensação de futuro se esfarela lentamente, qualquer promessa de melhora instantânea vira isca.

O marketing desse tipo de jogo não é ingênuo, ele opera sobre a falência emocional e financeira de uma população que está sendo esgotada sistematicamente por um modelo econômico que concentra privilégios e distribui sofrimento.

A estratégia é clara: transformar desespero em lucro.

Para isso o jogo se traveste de oportunidade única, a linguagem utilizada nos anúncios e influenciadores é sempre a mesma: “Comecei com 50 reais e comprei meu carro”, “É só ter coragem”, “Você está a um clique de mudar sua vida”. Essa lógica desloca a responsabilidade para o indivíduo e reforça uma narrativa de meritocracia fabricada, onde quem não consegue “vencer” é automaticamente visto como incompetente, burro ou fraco.

Nada mais conveniente para um sistema que lucra com a vulnerabilidade alheia.

As consequências emocionais disso são profundas, o jogador que perde não se sente enganado, ele se sente incapaz, como se o culpado fosse ele mesmo. A culpa se aloja no corpo, o medo se instala na mente e a vergonha isola. O que começou como uma tentativa de resolver um problema se transforma, rapidamente, em mais um agravante.

Entre os efeitos colaterais mais frequentes desse ciclo de promessa e frustração, podemos destacar:

  • Endividamento progressivo e descontrole financeiro, com apostas sucessivas em busca de recuperar o que já foi perdido, sem perceber que o jogo foi desenhado para perder.
  • Quadros de ansiedade aguda e ataques de pânico, especialmente quando há expectativa de retorno rápido e a realidade insiste em negar qualquer ganho real.
  • Episódios de depressão e retraimento social, marcados por vergonha intensa, sentimento de fracasso pessoal e abandono das relações familiares e comunitárias.
  • Ideação suicida em contextos de colapso emocional, quando a culpa por não “ter vencido” se junta ao desamparo psíquico e à instabilidade financeira.
  • Dissociação da realidade e fuga psíquica, com dificuldade de diferenciar o espaço simbólico do jogo da experiência concreta da vida cotidiana.
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Esse cenário é planejado, por isso a resposta ética não pode ser a culpabilização individual. Precisa ser a denúncia de um sistema que lucra justamente com aqueles que já não têm quase nada a perder.

A ética do cuidado diante de um modelo que adoece

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O que nos move é o cuidado.

Na Braine, escolhemos falar sobre o Jogo do Tigrinho porque compreendemos que o que está em jogo é muito mais profundo do que um aplicativo ou uma tendência digital.

O que nos move é o cuidado. E cuidar, nesse cenário, exige a coragem de tocar na ferida aberta de um modelo de sociedade que lucra com a dor, que transforma a precariedade em entretenimento e que, diariamente, oferece como alívio aquilo que sustenta a ferida.

Ao olharmos para a ascensão desse tipo de jogo, não nos interessa apenas saber quem está ganhando com isso, mas o que essa realidade diz sobre o desespero social que temos normalizado.

A pergunta que verdadeiramente nos atravessa é por que tantas pessoas se agarram a isso como se fosse a última boia em um mar revolto. Por que, em pleno século XXI, milhares de brasileiros apostam os últimos vinte reais em um jogo que promete um futuro que nunca chega?

Os terapeutas enfrentam um novo cenário que requer preparo

Escolher falar sobre o Jogo do Tigrinho é escolher falar sobre o colapso do cuidado, é reconhecer que vivemos em um tempo em que o sofrimento se tornou capitalizável e a ilusão virou mercadoria. A ciência não pode se isentar, a psicologia se quiser continuar sendo relevante, precisa sair da abstração e mergulhar na concretude dos fenômenos contemporâneos. Isso significa compreender o vício digital como mais do que um problema individual, mas como o reflexo de uma sociedade inteira que não sabe mais o que fazer com o próprio vazio.

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Na Braine, não romantizamos o uso e não patologizamos de forma simplista. Entre o discurso que criminaliza e o discurso que banaliza, escolhemos uma terceira via: a escuta comprometida com a realidade.

Porque ninguém se vicia porque quer.

Se vicia porque algo na vida real deixou de ser suportável, porque a dor deixou de ser nomeada, porque o corpo não encontrou saída e o afeto não foi acolhido. O que chamam de vício, muitas vezes, é só a tentativa desesperada de continuar funcionando num mundo que quebrou por dentro.

É por isso que insistimos: falar disso é uma questão ética. E ética, para nós, é sempre a escolha por enxergar o sujeito inteiro, inclusive quando ele está tentando escapar de si mesmo.

A Braine e o compromisso com uma escuta que repara

Na Braine, entendemos que tecnologia não é inimiga do cuidado, mas também sabemos que ela pode ser um instrumento de adoecimento quando usada para capturar pessoas mais sensíveis em vez de acolhê-las.

Por isso, nossa proposta é usar o melhor da inteligência artificial para ampliar a escuta clínica, identificar padrões de sofrimento invisíveis, apoiar intervenções éticas e fortalecer o protagonismo dos sujeitos em seus próprios processos de cuidado.

Quando olhamos para fenômenos como o Jogo do Tigrinho, reafirmamos que nosso trabalho é político, clínico e humano. E que enquanto houver estruturas que ganham com o sofrimento alheio, nosso compromisso seguirá sendo com o cuidado real, com a escuta profunda e com a construção de alternativas mais sensíveis, eficazes e transformadoras.

Se o jogo está sendo manipulado, nossa resposta é clara: não jogamos com a dor de ninguém. Cuidamos dela.

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